14/11/2024

Juiz dá lição de moral na Claro ao falar sobre tempo perdido

Denúncia de cliente acaba em condenação à Claro, com direito à citação de Renato Russo, Carlos Drummond, Sherlock Holmes, Toquinho e outros nomes famosos.

A Claro recebeu, no último dia 25, uma sentença no mínimo curiosa. Foi condenada a pagar R$ 7 mil em danos morais para uma cliente que fez 51 ligações reclamando de seus serviços. Mas o que desperta a curiosidade, mesmo, são as palavras ditas pelo juiz em sentença, que mais pareceu uma lição de moral para a operadora.

Em oito páginas, para justificar a condenação, ele citou cantores e músicas, poetas e poemas e até personagens da ficção para explicar para a Claro que não está certo fazer com que seus clientes percam tempo desnecessariamente. Ficou curioso?






Tudo começou, na verdade, com uma ação da cliente Solange Ribeiro da Silva, titular de seis linhas da Claro desde 2007. Ela pediu o pagamento de danos morais porque, todos os meses, tinha problemas relacionados à fatura do plano, o que tomava horas do seu dia em ligações prolongadas no SAC.

Além de juntar os 51 protocolos de atendimento referentes ao assunto – de 2013 a março de 2018 –, ela reclamou sobre ter sido cobrada por quebra de contrato de uma alteração no plano que não chegou a solicitar, pelas cobranças indevidas e porque, mesmo insatisfeita, tinha que continuar com a operadora, que era a única atuante em sua cidade.

A Claro até tentou se defender, alegando que as cobranças eram legais e que a cliente só teve seu nome negativado, aliás, porque houve uma quebra antecipada da fidelização do plano.
A operadora poderia até esperar a perda do caso, como acontece com outras empresas de telefonia regularmente processadas na Justiça, mas com certeza não contava com o juiz mais inspirado da história.

“Sir Arthur Conan Doyle colocou na boca de seu mais famoso personagem, Sherlock Holmes, a seguinte frase: ‘Uma vez eliminado o impossível, o que restar, não importa o quão improvável, deve ser a verdade’. Podemos logo descartar a hipótese de que, desde 2013, a parte autora fez ligações para a parte ré já com a intenção de ingressar com ação de indenização quatro anos e meio depois, como os planos quinquenais da malfadada ex-URSS comandada pelo nefasto Stálin”, começou o juiz Eduardo Perez Oliveira, titular da comarca de Fazenda Nova.
“Na vida em geral, pelo tamanho da sociedade e o número de atividades e compromissos que assumimos, errar é algo natural. Erramos continuamente, em pequenas gafes ou em atos mais complexos. Mandamos mensagens erradas pelos aplicativos e culpamos, às vezes com razão, o corretor automático. Há momentos em que erramos o destinatário. Tão ordinários são esses erros que aplicativos como WhatsApp e Telegram permitem que se apague mensagens equivocadas um tempo depois de enviadas”, continuou.
“Segundo o adágio notório, errar é humano, e a vida em sociedade exige complacência com os equívocos e tropeços alheios, para que tenham também com os nossos. Isso considerando uma situação razoável, onde o erro é exceção, não a regra (…) Veja-se o caso em voga. Não se pode considerar como algo normal ter que contatar a empresa todo mês para resolver problemas por ela mesma causados”.
Nesse ponto, o juiz começa a se pautar na doutrina norte-americana e a explicar a diferença do “ordinary negligence”, que é a ausência de cuidado de condutas esperadas, e do “gross negligence”, que seria um erro muito maior do que o suportável, vindo de alguém que não se importa com os outros e, mesmo sem querer resultados prejudiciais, não liga caso eles aconteçam. Para ele, é o que a Claro demonstrou no caso, que, de acordo com o Art. 422, também desrespeita a constituição.
“Trazendo para a realidade concreta, quando a consumidora celebrou o contrato com a empresa de telefonia, é óbvio que ela não descartava a ocorrência de eventuais erros, mas ela esperava, como qualquer um de nós espera, uma prestação de serviço eficaz, que não demande ajustes mensais por coisas triviais”.
O juiz chega a dizer que “até o mais dedicado monge cederia diante de anos de descaso” de uma empresa, e desabafa que o tempo do magistrado é curto e finito, como de todos os mortais desde a época de Adão.

TEM MAIS… E O TEMPO?

Ainda na metade da sentença, o juiz começa a falar sobre o tempo e como ele é sagrado, mesmo que “tenhamos o hábito de desperdiçá-lo, acreditando haver um amanhã”. 
Ele literalmente escreve, no próprio texto, trechos da música “Tempo Perdido”, de Renato Russo, da canção “Aquarela”, de Toquinho, e até um poema de Carlos Drummond de Andrade. “Todos os dias quando acordo não tenho mais o tempo que passou” e “Não temos tempo a perder” são alguns dos trechos escolhidos.
Ainda na sentença, ele escreve: “Lupicínio Rodrigues oferta rara lição de filosofia pouco notada em sua música ‘Maria Rosa’. Trata do presentismo da protagonista da letra, da vaidade, do arrependimento e da nostalgia. O mesmo autor, em ‘Esses Moços’ trata da ignorância e da experiência tardia que só o tempo traz.

De um lirismo ímpar a interpretação de Toquinho na música ‘Aquarela’, cuja letra conduz a uma reflexão sobre a passagem da vida, o futuro que chega ‘sem pedir licença’ e nos convida ‘a rir ou chorar’ na aquarela da vida ‘que um dia descolorirá’.”

Depois disso ele ainda cita o astrônomo e filósofo Omar Khayyam, a música “Memórias do Café Nice”, interpretada por Nelson Gonçalves, e fala que o tempo já foi assunto de vários filósofos, como Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Newton, Kant e Nietzsche, além de pauta de reflexões para físicos como Einstein e Hawking.
“Música, Poesia, Filosofia, Física, Religião, Cinema… não existe uma área onde o tempo não esteja presente ou não seja fruto de reflexão. Mesmo a pessoa mais bruta reconhece o significado da saudade, que surge com a passagem do tempo e a separação daquilo que é caro. 

Não há, portanto, dúvida que o tempo é um dos nossos ativos mais caros, forjando o adágio conhecido de ‘tempo é dinheiro’ (time is money). Mas tempo é muito mais que dinheiro. 

Cada segundo é um segundo de possibilidades, não apenas de negócios, mas de alegria, de compaixão, de tristeza, de júbilo, de compartilhar com os amigos, como na mencionada música ‘Aquarela’.

Nós, que somos empregados, vendemos nosso tempo e habilidades por dinheiro, para que no resto do tempo que nos sobra possamos ter alguma felicidade. Difícil encontrar adjetivo para falar de quem nos rouba o tempo, essa finitude que por vezes dá minutos de vida aos recém-nascidos e mais de um século a outros”.

A SENTENÇA CONTINUA…

Por fim, o juiz ainda fala algumas frases sobre o tempo e como ele não deve ser gasto da forma que aconteceu no processo em questão. Ele afirma que todos esses momentos citados foram tirados do consumidor por parte da Claro e que, embora não haja a tese de “perda de tempo útil” na Justiça, existe, sim, um ato que se configura como lesivo e que exige a indenização.
“Errar, como dito, é algo suportável. Não sei se é possível falar em ‘direito de errar’, uma vez que a conduta culposa pode gerar danos. Mas, dentro da razoabilidade da vida social, é admissível, como demonstrado, a ocorrência de certos fatos como meros aborrecimentos. Ultrapassada a razoabilidade, incide na ilicitude prevista no art. 186 do CC, demandando a indenização”.
A consumidora, por fim, será indenizada pela Claro no valor de R$ 7.000. A operadora, então, já fica ciente sobre as consequências do tal tempo perdido. O texto completo do juiz foi publicado no site do Tribunal de Justiça do estado de Goiás.

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